Nawã pulitikarã II

(Regatões negociando à margem)

-- Há-de dar o compadre
pelo espelho 'aruâ
Trinta libras de goma
     Na soma...
-- Não, Caríua, não dá.

(Souzândrade, O Guesa, O Tatuturema)

Nawã pulitikarã

- Seu Adauto, eu queria comprar um tambaqui pra nós fazer uma farofa, porque vamos subir o rio ainda uns dois dias. Será que o senhor vende um pra nós?

Ao que o candidato a vereador respondeu:

- Queísso, Nonato, que eu quando estou lá em cima não pago por nada, e nem chego a pedir: vocês me dão. Bora lá pra você ver como tá de fartura no meu açude, e não quero dinheiro não. Quero é levar o trator com a minha balsa até lá em cima, fazer açude pra todo mundo. Esse aqui foi feito com os cem mil que eu peguei no Banco da Amazônia. A produção de peixe tá toda empenhada nesse empréstimo. Vamos lá que eu vou roubar um peixe do banco pra vocês comerem, pra ver como é bom ter essa fartura perto de casa.

Enquanto isso, o tio materno, quase monolingue em hantxa kuin, continuava repetindo:

- Certim!

Deixa eu ser Zé Gaudino?


""Como liderança, papai tinha que estar sempre com ânimo para inventar aquelas grandes caçadas, aqueles forrós homéricos, essas coisas de epopeia. Em um dia quente de início de verão, ele organizou uma tinguizada no rio abaixo, para qual saiu convidando com alegria os seus filhos e genros, e suas famílias. Nesse dia a sociedade que ele queria fazer era restrita: não queria fazer negócios com bebida, queria só beber. Catou suas últimas garrafas de cachaça, seu terçado e sua panela. Calçou as botas e foi-se pelo caminho buscar tingui. De lá vinha seu Zé Gaudino, cariú satisfeito carregando banana, novato na colocação.

- Pegando tingui, seu Antônio. A pesca é onde, animada assim com dois tatuzinho?

- Ah, hoje tem pesca não, é as mulheres que vão ali buscar qualquer coisa, pra comer com atsa.
- Ora, pois vinha pensando mesmo em procurar alguma coisa também, pra comer com a banana que vou mandar Maria cozinhar pra gente. Bora depois da pescaria tomar essas garrafas lá em casa.

"Cariú enxerido", pensou meu pai, antes de insistir:


- Mas vô tirar pouco tingui, pra num estragar o poço, que os menino agora tão falando que estraga.
- Tem nada não, só mais um bolo num faz diferença. Qualquer coisa fui eu quem colocou, que o senhor num estraga nada que é pro seu povo comer depois.
- Então vai buscar tua panela, e pega bota, que elas vão é pra lá da boca do Soberbo, passando naquelas tabocas todas lá.

O cariú foi então buscar tingui no seu quintal. Veio de lá calçado trazendo terçado e panela também. Nisso meu pai ia já longe, que, tendo falado o lugar errado pro Zé Gaudino, achou que tinha se livrado dele. Quando ia já descendo o barranco, ouviu a voz do cariú detrás dele:

- Mas seu Antônio, num era pro outro lado?

E meu pai foi olhando pro nawa, pensando em açoitar ele com a banda do terçado, mas se conteve, virou e foi andando calado. O cariú foi indo junto, falando muito. Que cariú que é bom de conversa fala mesmo. Quando eles alcançaram as mulherada, e os parente do meu pai, que já iam quatro voltas de rio abaixo, o filho mais velho dele perguntou, na língua mesmo, que era pro cariú não entender o que eles vinham falando:

- Mas pai, tu num disse que era só a gente? Minha mulher já tá achando ruim comigo. Diz ela que esses cariú fica só mesmo olhando as meninas quando elas vão tomar banho.
- Mas num é que eu vinha só, mas que ele de enxerimento veio de conversa me seguindo?
- Deixa eu bater nele. Quer ver como ele chora?
- Num faça isso, que eu já ia batendo nele e deixei. Meu filho, eu sou a liderança, tenho conduta, deixa ele ir com a gente, que ele vai aprender alguma coisa.

Meu pai era uma grande liderança, que quando tinha briga, mesmo longe, eles iam até ele pegar conselho, e pedir remédio pra amansar mulher, e pedir pra ele apartar briga de irmãos, essas coisas".

Isso o velho me contou pra explicar porque, ainda hoje, eles quando vão em um lugar sem ser convidados chegam lá cumprimentando:

"Opa, deixa eu ser Zé Gaudino, e que tal está você?..."

Acho que era também pra explicar minha situação, explicar aquela sociedade que nascia ali. Eu estava ali sem ser convidado, fazendo pesquisa, e tal. Eu era dispensável, em certo sentido, mas minha presença ali compunha uma sociedade diferente. Estava lançada a esperança de ser recebido aqui em casa também, de chegar aqui e se dizer Zé Gaudino. Pois ir sem ser convidado é dispor-se a dever, é generosidade também".

('crônica' dedicada à memória do sábio Tuin Kuru)

4 sinais (de 2010)


Alguns lingüistas se aproximam da missiologia, quando transformam em seu comprometimento íntimo – o destino posto a si como desejo – seu apego por uma máquina tradutória de extrair constantes, de reduzir o único em convenção, de transformar o possível em correto. A construção abstrata de um campo institucional, com relações de trabalho e prestígio (métodos, instituições de pesquisa, filiações teóricas) substitui aquilo que o lingüista é capaz de experimentar com a língua que estuda, e posteriormente substitui o que ele poderia experimentar com a sua própria linguagem. Ele assim coloniza de fora para dentro, até ficar preso nas malhas de sua própria capacidade de expressão cotidiana. Seu objeto deixa de ser a língua em sua transformação interminável, para se tornar os movimentos lingüísticos mais corriqueiros, mais estereotipados, “este é o cachorro dele”, “a menina está sentada perto do cesto”, “quanto custa o chocolate?”.

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Em que pese as nossas boas intenções ao valorizar a diversidade lingüística brasileira, a relação de alguns povos com as suas línguas, e com o pano de fundo que as acomoda, é uma relação de aventura, de transformação, e não uma relação patrimonial, de fidelidade a um corpo reificado de formas gramaticais. Talvez, esta irrefreável abertura ao Outro indique o quanto o futuro dessas línguas está entrelaçado ao nosso: continuarão apresentando-nos o diverso, se formos capazes de parar de apresentar-lhes um futuro onde essas formas não têm mais lugar.

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Há, em alguns sistemas estruturalmente abertos ao Outro, uma predileção por variar na língua portuguesa a busca daquilo que ainda não se sabe. Assim, sujeitos praticamente monolíngües em hãtxa kuin (a fala verdadeira dos Kaxinawa) cantam hinos em português nos espaços abertos pela ayahuasca. A língua do Outro aparece como fronteira, como borda: além dela, o indiferenciado; aquém, a clareza do cotidiano. Nela, a experiência fascinante de ver o fora tornar-se forma.

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“São os esforços, incessantemente repetidos, dos indivíduos de uma nação, para adaptar sua língua ao seu pensamento do momento que podem ter o efeito de modificar e transformar pouco a pouco as línguas, de suscitar línguas novas” (Gabriel Tarde). E, por outro lado, “somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo" (Guimarães Rosa).