"Não é novidade nenhuma dividirem-se os regimes fundamentais pelos quais a humanidade se rege em Matriarcado e Patriarcado. Aquele é o regime do Direito Materno e este, o do Direito Paterno. Aquele tem presidido à pacífica felicidade dos povos marginais, dos povos a-históricos, dos povos cuja finalidade não é mais do que viver sem se meterem a conquistadores, donos do mundo e fabricantes de impérios.
O professor italiano Ernesto Grassi, que nos tem visitado, pende hoje para uma tese que realça as virtudes do Matriarcado, principalmente as do a-historicismo, em face do descalabro a que nos vem conduzindo o Patriarcado, cuja maior façanha é a descoberta da bomba de hidrogênio e que tem como sua carta de identificação o capitalismo, desde as suas formas mais obscuras e lavadas até a glória de Wall Street.
A descoberta do Novo Mundo veio trazer ao panorama da cultura européia um desmentido paradisíaco. O ecumênico cristão caía de um golpe. Do outro lado da terra - que era redonda e não chata e parada, com céu encima e inferno embaixo - havia gente e gente que escapava por completo ao esquema valetudinário da Idade Média, o qual fazia desta vida um simples trânsito.
Desde então, mesmo que não identificado e compreendido, surgiu no horizonte das controvérsias essa extraordinária questão do homem natural, sem culpa de origem e sem necessidade alguma de redenção ou castigo.
As Utopias foram as caravelas ideológicas desse novo achado - o homem como é, simples e natural.
De Morus a Campanella até nossos dias, a humanidade insiste, sem saber, em se matriarcalizar. Todas as chamadas lutas pela liberdade não passam senão de episódios da guerra contra o regime de desigualdade e da herança, imposto pelo Direito Romano e sagrado pelo Cristianismo.
O branco, que se chamou de civilizado, insistiu em padronizar a sua “superioridade”. Mas nem sempre foi feliz. Caso curioso é esse do sábio Lévy-Bruhl, um dos mais autorizados sociólogos da França contemporânea. Lévy-Bruhl criou a lenda de uma mentalidade pré-lógica, isto é, primitiva. Havia-se encontrado, enfim, a linha demarcatória entre a mentalidade primitiva e a mentalidade civilizada. Esta era a vitoriosa detentora do instrumento de todas as mágicas da inteligência. Era a possuidora da lógica. A lógica que fizera a ascenção de Estagirita, através das névoas platônicas que recobriam a Idade Média religiosa. A lógica que criara e disciplinara a ciência e que viera trazendo, nas conquistas da guerra e da paz, a luz decisiva do progresso. A lógica que de Aristóteles a Descartes pusera de pé mais que o homo faber, o mundo faber. Ao contrário desse título que justificava todos os privilégios e com eles os racismos e os imperialismos, uma outra pobre humanidade, colorida de azeviche ou pigmentada de ocre, vegetava nas regiões onde ainda era permitido andar nu e viver feliz. Para essa, era evidente que só poderia sobrar uma mentalidade diversa e inferior - a mentalidade pré-lógica.
O primitivo, que, pela sua teimosa vocação de felicidade, se opunha a uma terra dominada pela sisudez de teólogos e professores, só podia ser comparado ao louco ou à criança.
Dividiu-se então o mundo entre duas categorias de seres: a superior, que tinha como seu padrão “o adulto, branco e civilizado”, e a outra, que juntava no mesmo comboio humano “o primitivo, o louco e a criança”. Esse esquema fácil ultrapassou o século XIX, que não atendeu aos rugidos proféticos de Marx, ao sol novo de Nietzsche, que não atendeu aos abismos siderais de Freud".
Oswald de Andrade, em A Marcha das Utopias