"Num passado bem distante, pré-histórico sem dúvida, vivia no Purus, rio que corre paralelamente ao Juruá, uma cobra que se chamava Cobra Grande, Mãe d'Água. Ora, aconteceu que um dia a Cobra Grande soube, por alguma má língua, sem dúvida há delas em toda parte, que no calmo lago de Yainu existia uma cobra mais poderosa do que ela. Não foi preciso mais do que isso para estimular a sua curiosidade, ferir o seu orgulho e excitar a sua inveja. É o que vou ver agora, disse a Cobra Grande, colocando-se resolutamente em marcha para se medir com a sua adversária, que se chamava Honorata. Não nos dizem quanto tempo ela demorou para chegar lá, mas ainda assim ela chegou um dia, com orgulho e desprezo, às margens do lago Yainu. (...)
Honorata tinha na ponta de sua linha um magnífico peixe-boi e se preparava para comê-lo quando subitamente viu a Cobra Grande do Purus aparecer. Abandonando imediatamente o seu rico butim, Honorata, mal dissimulando o seu descontentamento, perguntou à importuna quem ela era, e o que lhe valia a honra de uma visita, que ela tão pouco esperava. Cobra Grande lhe respondeu: 'sou a Cobra Grande do Purus, a mãe d'água, e, por isso, única rainha das águas deste território e que na sua insolência você finge desconhecer. Mas me apresentar a você não é o único objetivo da minha viagem. Ainda tenho que lhe perguntar, Honorata, com que direito você se estabeleceu nesta parte dos meus domínios, sem ao menos se dignar a pedir a minha autorização (...)'.
Não foi com pouco esforço que Honorata escutou este longo e insolente discurso da Cobra Grande, porque, a cada palavra, Honorata se sentia ofendida, sentia nascerem nela todos os instintos belicosos e também ferver a mais terrível das iras. Assim, quando a Cobra Grande se calou, ela fez com que fossem escutados os seus assobios assustadores, como os que produziam as 135 sirenes dos 135 vapores da companhia do Lloyd, que apitavam ao mesmo tempo; uma imensa onda de espuma esverdeada, parecida com um rio fervendo, escapou de sua goela, e os seus olhos lançavam raios, como as tempestades mais famosas nenca chegaram a produzir. Todo o território tremia em fogo. No entanto, Honorata, tendo se recomposto um pouco, respondeu com estas palavras a Cobra Grande: 'quem quer que você seja, Cobra Grande do Purus, ou gênio das águas, não estou nem um pouco preucupada. Concedo-lhe não as qualidades necessárias, mas a liberdade de se gabar do título que lhe aprouver: agora, querer mandar na minha casa, vir me insultar e me provocar, eis o que eu não vou permitir nunca (...)'.
Honorata tendo assim falado, obteve a resposta de Cobra Grande, que consistiu numa gargalhada formidável, que fez tremer a floresta. (...) Assim, não podendo mais suportar estas insolentes provocações, Honorata se jogou sobre Cobra Grande. O choque foi assustador, Cobra Grande recebeu este primeiro e terrível choque razoavelmente bem, então Honorata enlaçou-a com suas dobras e redobras, pegou-a pela garganta, e, em menos tempo que é preciso para dizê-lo, levara Cobre Grande ao seu limite. Este combate foi curto, mas terrível e decisivo, um verdadeiro cataclisma. (...) O barulho infernal que faz o Chimborazo em erupção não é nada em comparação com o estrondo assustador que se ouviu então dos Andes ao Atlântico. Eram os gigantes da floresta que, agarrados pelos anéis dos dois combatentes, quebrados como frágeis galhos, caíam com um estrondo aniquilador e quebravam tudo na sua queda. A própria terra tem marcas que serão para os séculos futuros os testemunhos irrefutáveis desta luta terrível entre Honorata e Cobra Grande. A rainha do Purus, vendo-se a ponto de perder a vida, aproveitou um momento para se soltar do terrível abraço de Honorata e fugiu toda envergonhada para engolir a sua vergonha e verter a sua bílis no Purus, onde ela evitou falar do seu fracasso. Honorata, orgulhosa de sua força e bravura, vendo a Cobra Grande fugir, olhava à sua volta. Mas qual não foi o seu espanto ao constatar que o seu tranqüilo domínio, o lago Yainu, não existia mais, ele se transformara num imanso rio com sinuosidades de cobra. Era simplesmente o Juruá, que a própria Honorata acabara de cavar ao lutar, e o lago, rompendo os seus diques, tinha deixado correr as suas águas na trilha traçada pelo corpo da cobra. Desde essa época, diz a história, Honorata vive tranqüila à sombra dos seus louros, deitada no leito do Juruá, orgulhosa de ter vencido a maior, mais poderosa e também a mais pérfida cobra da Amazônia, feliz também de ter aberto para a navegação nacional uma nova via que traz riqueza e abundânica para a sua região natal. Honorata pode, de fato, viver orgulhosa e feliz no seu domínio do Juruá, e aceitar, sem cerimônia, o reconhecimento de todos os amazonenses, seus devedores".
(Jean-Baptiste Parrissier, "Seis meses no país da borracha, ou excursão apostólica ao rio Juruá", 1898 - no livro: Tastevin, Parrissier, org. M. Carneiro da Cunha, editado pelo Museu do Índio, FUNAI RJ)