"Em 23 de outubro de 1853 no Engenho Columinjuba, localizado no então distrito de Maranguape (CE), nascia João Honório Capistrano de Abreu. Ele fez seus primeiros estudos em Fortaleza, onde viveu até 1869, ano em que se mudou para Recife. Sua atuação como intelectual ganhou impulso em 1875, quando se transferiu em definitivo para o Rio de Janeiro. Nomeado em 1879 para o cargo de Oficial da Biblioteca Nacional, permaneceu na função até 1883. Nessa data, foi aprovado em concurso para professor de Corografia e História do Brasil do Colégio Pedro II. Uma reforma educacional surgida em 1898 colocou-o em disponibilidade e afastou-o da docência. Até seu falecimento, em 1927, Capistrano de Abreu colaborou ativamente na imprensa e dedicou-se a análises históricas e etnográfico-lingüísticas.
Além da língua Kaxinawá (da família Pano), Capistrano de Abreu devotou-se ao exame da língua e da cultura dos Bakairi (da família Caribe). Em 1895, publicou o artigo “Os Bacaeris” na Revista Brazileira, fruto de estudos que desenvolveu entre 1892 e aquele ano. A língua Bakairi ocupou-lhe, ainda, ao que tudo indica, entre 1915 e 1927. Infelizmente, essa segunda temporada de pesquisas não chegou a ter seus resultados publicados.
Merece aplauso a inclusão da obra clássica de Capistrano de Abreu sobre a língua e as narrativas tradicionais kaxinawás na Brasiliana Digital. Com suas mais de seiscentas páginas, o rã-txa hu-ni-ku-ĩ representa uma fonte de valor inestimável para lingüistas, etnólogos e antropólogos. Além, naturalmente, de constituir-se num registro de especial valor para os huni kuin (kaxinawá) que, por conta de sua digitalização, verão facilitado o seu acesso à obra.
Publicada em 1914 e batizada com o nome que os falantes nativos dão à sua língua (rã-txa hu-ni-ku-ĩ, que se pode traduzir como ‘língua dos homens verdadeiros’), ela recebeu o subtítulo “a língua dos caxinauás do Rio Ibuaçu affluente do Muru (Prefeitura de Tarauacá)” e apresenta, além de uma descrição gramatical condensada em onze páginas, mais de uma centena de textos tradicionais, agrupados tematicamente e apresentados em duas colunas: a primeira contendo a narração original em Kaxinawá e a segunda com uma tradução palavra por palavra que segue a ordem sintática do original (o que leva a construções como “mim saia faze para!”, na página 51). Entre as páginas 524 e 546, encontra-se o “Vocabulario brasileiro-caxinauá” com 1781 verbetes. Ainda mais copioso, o “Vocabulario caxinauá-brasileiro” ocupa da página 547 à 621 e reúne 4329 verbetes.
Resultado de um trabalho intenso, duradouro e minucioso, empreendido com o auxílio de dois informantes nativos enviados ao Rio (Borô e Tuxinĩ, a quem Capistrano de Abreu chama “co-autores” da obra), o rã-txa hu-ni-ku-ĩ foi considerado um trabalho exemplar pela comunidade internacional de especialistas em línguas sul-americanas dos anos 1890-1929, que se via frente ao desafio de registrar o mais rapidamente possível culturas julgadas fadadas a desaparecer em pouco tempo por conta do avanço da exploração econômica. Paul Rivet (1876-1958) e Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), dentre outros americanistas de relevo na época, declararam sua admiração pela obra em artigos, resenhas e cartas privadas e apontaram o Kaxinawá como a língua sul-americana melhor descrita até então.
Como uma primeira versão da obra foi consumida pelo fogo durante o grande incêndio da Imprensa Nacional em 15 de setembro de 1911, o rã-txa hu-ni-ku-ĩ editado em 1914 corresponde a uma segunda tentativa de Capistrano de Abreu de concretizar a publicação de um trabalho sobre a língua e as narrativas tradicionais kaxinawás. Por iniciativa da Sociedade Capistrano de Abreu e com patrocínio de Guilherme Guinle, uma segunda edição do rã-txa hu-ni-ku-ĩ veio a público em 1941, contendo “emendas do autor” levantadas pelos editores em dois exemplares da primeira edição.
Em tudo fiel aos referenciais teórico-metodológicos dos sul-americanistas do início do século XX, o trabalho de Capistrano de Abreu sobre a língua e as narrativas kaxinawás tornou-se um dos únicos a colocar em prática o ideal de descrição lingüística daquela comunidade de especialistas: a investigação a partir dos textos tradicionais, que eram considerados uma porta de entrada privilegiada para a ‘língua real’ das comunidades indígenas".