Deixa eu ser Zé Gaudino?


""Como liderança, papai tinha que estar sempre com ânimo para inventar aquelas grandes caçadas, aqueles forrós homéricos, essas coisas de epopeia. Em um dia quente de início de verão, ele organizou uma tinguizada no rio abaixo, para qual saiu convidando com alegria os seus filhos e genros, e suas famílias. Nesse dia a sociedade que ele queria fazer era restrita: não queria fazer negócios com bebida, queria só beber. Catou suas últimas garrafas de cachaça, seu terçado e sua panela. Calçou as botas e foi-se pelo caminho buscar tingui. De lá vinha seu Zé Gaudino, cariú satisfeito carregando banana, novato na colocação.

- Pegando tingui, seu Antônio. A pesca é onde, animada assim com dois tatuzinho?

- Ah, hoje tem pesca não, é as mulheres que vão ali buscar qualquer coisa, pra comer com atsa.
- Ora, pois vinha pensando mesmo em procurar alguma coisa também, pra comer com a banana que vou mandar Maria cozinhar pra gente. Bora depois da pescaria tomar essas garrafas lá em casa.

"Cariú enxerido", pensou meu pai, antes de insistir:


- Mas vô tirar pouco tingui, pra num estragar o poço, que os menino agora tão falando que estraga.
- Tem nada não, só mais um bolo num faz diferença. Qualquer coisa fui eu quem colocou, que o senhor num estraga nada que é pro seu povo comer depois.
- Então vai buscar tua panela, e pega bota, que elas vão é pra lá da boca do Soberbo, passando naquelas tabocas todas lá.

O cariú foi então buscar tingui no seu quintal. Veio de lá calçado trazendo terçado e panela também. Nisso meu pai ia já longe, que, tendo falado o lugar errado pro Zé Gaudino, achou que tinha se livrado dele. Quando ia já descendo o barranco, ouviu a voz do cariú detrás dele:

- Mas seu Antônio, num era pro outro lado?

E meu pai foi olhando pro nawa, pensando em açoitar ele com a banda do terçado, mas se conteve, virou e foi andando calado. O cariú foi indo junto, falando muito. Que cariú que é bom de conversa fala mesmo. Quando eles alcançaram as mulherada, e os parente do meu pai, que já iam quatro voltas de rio abaixo, o filho mais velho dele perguntou, na língua mesmo, que era pro cariú não entender o que eles vinham falando:

- Mas pai, tu num disse que era só a gente? Minha mulher já tá achando ruim comigo. Diz ela que esses cariú fica só mesmo olhando as meninas quando elas vão tomar banho.
- Mas num é que eu vinha só, mas que ele de enxerimento veio de conversa me seguindo?
- Deixa eu bater nele. Quer ver como ele chora?
- Num faça isso, que eu já ia batendo nele e deixei. Meu filho, eu sou a liderança, tenho conduta, deixa ele ir com a gente, que ele vai aprender alguma coisa.

Meu pai era uma grande liderança, que quando tinha briga, mesmo longe, eles iam até ele pegar conselho, e pedir remédio pra amansar mulher, e pedir pra ele apartar briga de irmãos, essas coisas".

Isso o velho me contou pra explicar porque, ainda hoje, eles quando vão em um lugar sem ser convidados chegam lá cumprimentando:

"Opa, deixa eu ser Zé Gaudino, e que tal está você?..."

Acho que era também pra explicar minha situação, explicar aquela sociedade que nascia ali. Eu estava ali sem ser convidado, fazendo pesquisa, e tal. Eu era dispensável, em certo sentido, mas minha presença ali compunha uma sociedade diferente. Estava lançada a esperança de ser recebido aqui em casa também, de chegar aqui e se dizer Zé Gaudino. Pois ir sem ser convidado é dispor-se a dever, é generosidade também".

('crônica' dedicada à memória do sábio Tuin Kuru)