Salas de aula

(fotos de Julian Germain, retiradas daqui)



(em homenagem à Serra do Cipó, que tem a sala mais diversa de todas - a quinta de baixo pra cima)

(download do panfleto: http://www.atoa.net.br/)

#ATOA na terraterra (áudios)

Os áudios das falas da #ATOA no evento terraterra (Casa de Rui Barbosa, 15 de junho de 2012) estão disponíveis no blogue da #ATOA.

TERRATERRA


"Então chegou a vez da ‘descida antropofágica’. Vamos comer tudo de novo”
(aqui)

Money Jungle


Money Jungle - Duke Ellington, Charles Mingus e Max Roach (1962)

Filosofia da devoração

“Tendi e tendo cada vez mais para uma filosofia que chamo de filosofia da devoração. A vida é devoração pura e só há  uma conduta a seguir: o estoicismo. É verdade que outro conceito da existência divide a humanidade. É o conceito messiânico e salvacionista. Os que se enfileiram debaixo dessa bandeira são os que acreditam que há qualquer coisa a salvar dentro deste mundo ou fora dele. O primeiro pensamento é que presidiu a vida das sociedades primitivas tão superiores às sociedades civilizadas. Estas servem-se do messianismo para criar as servidões do corpo e do espírito e as ilusões de toda espécie” (Oswald de Andrade em uma entrevista para a Manchete, 1954).

Nawã pulitikarã III

"Diz-que que um índio veio a Cruzeiro do Sul montado num cavalo. Um nawa, interessado em cavalos, achou bonito o animal, que mesmo magro era vistoso. Resolveu enganar o índio.

- Txai, me vende teu cavalo, eu te compro ele bem.

- Vendo, meu txai. Vendo por quatro mil cruzeiros.

- Queísso, txai, tá caro.

- Tá caro, né? Então não vendo não.

Então o branco pensou: "vou embebedar esse caboclo, que daí ele vende baratinho".

- Peraí, txai, não vai agora não. Bora tomar uma cahcaça?

- Bora.

E os dois começaram a beber. O branco foi servindo para o índio mais cachaça do que ele próprio bebia. Quando o txai estava bem bêbado, ele voltou a perguntar:

- Então, txai, eu sou teu amigo, eu tô aqui te pagando uma cachaça. Vende teu cavalo pra mim...

- Vendo. Vendo na hora. Vendo por seis mil cruzeiros.

- Mas tá mais caro que antes!! Vende então pelos quatro mil mesmo.

- Vendo nada. Se quiser é seis mil cruzeiros.

- Mas por que?

- Porque eu ia vender meu cavalo pra tomar uma. Agora que eu estou bêbado eu só vendo se for pra comprar um motor".

 

Produzir ou morrer (ou 1974 p.II)

"Atualmente, em toda a América do Sul, os últimos índios livres sucumbem sob a pressão enorme do crescimento econômico, brasileiro em particular. As estradas transcontinentais, cuja construção se acelera, constituem eixos de colonização dos territórios atravessados: azar dos índios com quem as estradas deparam! Que importância podem ter alguns milhares de selvagens improdutivos comparada à riqueza em ouro, minérios raros, petróleo, em criação de bovinos, em plantações de café, etc.? Produzir ou morrer, é a divisa do Ocidente".

(Pierre Clastres, "Do Etnocídio", em Arqueologia da Violência)

Metafísica reversa

O crente, fazendo proselitismo, perguntou:

- Deus sem você é Deus. E você sem Deus, o que é?

Ao que o txai kaxinawa respondeu:

- Hum... Você?

Rio Branco, fevereiro 2012










(fotos de Amanda Schoenmaker)

doze observações sobre OA

(postado originalmente no blog da #ATOA)


1. Vivemos no seio de uma cultura messiânica, apesar de Oswald de Andrade ter prognosticado o declínio irrevogável do Messianismo em 1950. E mesmo depois da chamada "onda vermelha" ter se propagado pela América Latina, parecendo transformar antigas estruturas e estabelecer novas relações entre a multidão e o poder, voltamos a perguntar com espanto: "Quem poderia prever, quem ousaria sonhar que o Messianismo em que se bipartiu a religião do Cristo (Reforma e Contra-Reforma) iria medrar no terreno sáfaro das reivindicações materialistas do Marxismo?".

2. Recentemente, em resposta às nossas "reivindicações materialistas", e para o nosso governo, a presidenta Dilma Rousseff definiu "desenvolvimento sustentável" como "crescimento acelerado de nossa economia para poder distribuir riqueza". Certamente, podemos ouvir algum eco marxista na resposta da presidenta: reverberando a ideia hegeliana de história e o conceito darwinista de evolução, o desenvolvimento apareceria para o marxismo como processo dado e intransitivo, que acontecia aos coletivos humanos de maneira irreversível e espontânea. A partir do terceiro quartel do século XX, no entanto, essa ideia sofreu transformações significativas. A história é conhecida: em 1949, em seu primeiro proferimento como presidente dos EUA, Truman lança o chamado Point Four Program, segundo o qual as nações desenvolvidas deveriam se esforçar por "tornar os benefícios de nossos avanços científicos e de nosso progresso industrial disponíveis para a melhoria e o crescimento das áreas subdesenvolvidas". O desenvolvimento consolida assim sua imagem como processo transitivo, atuado pela organização dos homens, e o seu novo par, o negativo dialético "subdesenvolvimento", ocupa doravante o lugar de estado de coisas dado, não atuado, natural. Posteriormente, no famoso relatório "Our Common Future" (1988), a World Commission on Environment and Development, constituída pela Assembléia Geral das Nações Unidas, assentará a ideia segundo a qual "a humanidade tem a capacidade de tornar o desenvolvimento sustentável (...). O conceito de desenvolvimento sustentável realmente implica limites - não limites absolutos, mas limitações impostas pelo presente estado da tecnologia e da organização social sobre os recursos ambientais, e pela habilidade da biosfera de absorver os efeitos das atividades humanas. Mas a tecnologia e a organização social podem ser manejadas e melhoradas para abrir caminho para uma nova era de crescimento econômico. (...) A pobreza não é apenas um mal em si mesma (...). Um mundo no qual a pobreza é endêmica será sempre suscetível a catástrofes ecológicas e outras".

3. Como uma ideia poderia ter adquirido uma consistência tão duradoura, ao ponto de ter sido posta à prova sucessivas vezes desde o século passado, nunca resultando no que dela se esperava, mas, ainda assim, evocando a esperança de emancipação e salvação, o fim da pobreza? Apenas enquanto parte de um culto religioso, baseado no sequestro daquilo que Oswald de Andrade chamou de "sentimento órfico", pôde a ideia de desenvolvimento ser universalizada de tal forma, se erigindo ao redor do mundo como uma espécie de promessa messiânica. A promessa é o que enxerta a transcendência futura em um estado atual, determinando-o como presente a ser superado. Sua força é proporcional à intensidade da pobreza, "que não é apenas um mal em si mesma": é a nossa condição, desde a velha falta decorrente da expulsão do paraíso - momento chave de nossa antropo(tecno)logia -, "esta, na verdade, é a origem de nossa religião do "desenvolvimento"". O Messianismo encontra assim o que talvez seja o seu avatar contemporâneo mais importante, que projeta a ilusão de que a riqueza produzida pela servidão acumulada poderá ser partilhada igualmente.

4. Dessacralizado, o Messianismo permanece associado à multiplicação do mal no mundo, para, paradoxalmente, alimentar a esperança de purgá-lo. A administração da miséria e da desigualdade empurra os homens para formas de servidão de onde eles podem ouvir as promessas de uma outra vida - pois, "sem a ideia de uma vida futura, seria difícil ao homem suportar a sua condição de escravo". Essa vida prometida é o que os mantém trabalhando em um mundo onde a lei se institui como coação e o Patriarcado segue tranquilamente produzindo o patrimônio (propriedade e herança).

5. No entanto, enquanto o Patriarcado ameaçava converter todos os mundos, expandindo os laços da servidão e fazendo-os ressoar suas promessas messiânicas, sob o sol das Américas os fugitivos do deserto monoteísta puderam experimentar os sinais da vida prometida, transvalorados em Utopia. As utopias, "consequência da descoberta do novo mundo e sobretudo da descoberta do novo homem, do homem diferente", são fruto do encontro entre "o errático e o imaginoso, a aventura e a América". Nesse encontro, aqueles que aqui chegavam vislumbraram a possibilidade de uma outra sociedade (ou, ainda hoje, "a lembrança viva de que é possível viver de uma outra forma", como disse um famosos sertanista ao comentar a resistência dos povos em isolamento voluntário na fronteira entre o Brasil e o Peru), enquanto aqueles que aqui estavam talvez viram a realidade de uma natureza diferente. De qualquer forma, as utopias, "caravelas ideológicas desse novo achado - o homem como é, simples e natural", são também o meio pelo qual a filosofia se torna política, e assim "leva ao mais alto ponto a crítica de sua época".

6. Oswald contrapôs a realidade utópica do Matriarcado à expansão temporal do Patriarcado. "Aquele é o regime do Direito Materno e este, o do Direito Paterno. Aquele tem presidido à pacífica felicidade dos povos marginais, dos povos a-históricos, dos povos cuja finalidade não é mais do que viver sem se meterem a conquistadores, donos do mundo e fabricantes de impérios". A Utopia oswaldiana é a retomada das "virtudes do Matriarcado, principalmente as do a-historicismo, em face do descalabro a que nos vem conduzindo o Patriarcado, cuja maior façanha é a descoberta da bomba de hidrogênio e que tem como sua carta de identificação o capitalismo, desde as suas formas mais obscuras e lavadas até a glória de Wall Street". Para essa retomada, descida antropófaga, "será preciso criar uma Errática, uma ciência do vestígio errático, para se reconstruir essa vaga Idade de Ouro, onde fulge o tema central do Matriarcado".

7. A Errática contra-efetua a possibilidade de um tempo intensivo, "a-histórico", no qual já tínhamos tudo aquilo que (quase) perdemos. "Tínhamos a justiça codificação da vingança". "Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro". Ainda é possível tomar posse dos vestígios desse tempo que nunca passou, e que permanece como possibilidade, em oposição à promessa. Promessa é dívida, costuma-se dizer, mas antes da dívida já tínhamos a dádiva: mesmo quando capturadas por uma "economia em desenvolvimento" as nossas relações permanecem articulando os espíritos das coisas trocadas, como sempre fizeram. A antropofagia implica a fabricação do tempo, desde a sua inspiração nos grupos tupi, dentre os quais a vingança antropofágica produzia uma memória voltada para o futuro - "nos tupi, a memória estará a serviço de um destino e não de uma origem, de um futuro e não de um passado". Enquanto a "cultura messiânica" se realiza nas antropotecnologias produtoras de um tempo sujeitado - no qual "o relógio mecânico inaugura a civilização da máquina, que é a do trabalho e do tempo contado" - a Errática possibilita a reintegração da posse do tempo, o arrebatamento do mundo das mãos da civilização do relógio: "o mundo não datado. Não rubricado".

8. "O que fazer?", pergunta o comunista. A experiência e o tempo, tergiversa o antropófago. Pois de pouco adiantaria opor à filosofia messiânica ideias distintas, outro sistema político, outra religião ("sublimações antagônicas"). A retomada do mundo se faz por um procedimento - "roteiros, roteiros, roteiros..." - que não idealiza uma nova forma de viver, porque, em certo sentido, a forma de vida é o dado. Considerá-la assim é assumir que ela não pode ser proposta ou arquitetada: a vida ainda resiste ao condicionamento e ao controle. Fora de suas determinações antropomórficas, não há forma de vida que seja uma nova solução para a equação que o tempo presente nos coloca. Viver é sempre e novamente partir do axioma dado no tempo do mito. "Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia". Opor ao sistema hegemônico outro conjunto de ideias, outra promessa, seria reiterar o Messianismo. E pode ter sido essa a razão do malfadado destino de certas comunidades alternativas: seu modo de questionar os mecanismos através dos quais o poder governa a vida dos homens acabou possibilitando formas de servidão mais diretas, mais opressoras, mais perversas. Elas deixaram intocada a forma subjacente de produção da sociedade - o princípio segundo o qual todos deveriam trabalhar para pensar da mesma forma, partilhar o mesmo ideal, se juntar ao redor das mesmas coisas. É o profundo antropocentrismo messiânico: pensar que a ordem é conferida ao mundo pelo trabalho humano, e que aquilo que nos faz viver junto depende de nossa ação e de nossa vontade, de nosso controle. O elogio da práxis e a teologia do trabalho. Esse mesmo antropocentrismo fundamenta o pensamento crítico, herdeiro do kantismo, que insiste em trocar todo "é assim" (axioma) por "nós pensamos/representamos assim" (equação). A uma ideologia coletivizante somente se pode opor uma experiência diferenciante. A "transformação do tabu em totem. Do valor oposto ao valor favorável".

9. "Do valor oposto ao valor favorável": importa sair do estado de negatividade em que nos encontramos, fértil em promessas messiânicas, mundo em que o homem civilizado vestiu o índio, determinado-o doravante como subdesenvolvido. Para isso, "é preciso ouvir o homem nu", ou o "homem natural tecnizado". "O que me interessa é só a retirada dessa civilização ocidental, na direção moral e mental do nosso índio". Esse procedimento, aparentemente negativo, é transvalorado em positividade utópica: "a transfiguração do tabu em totem. Antropofagia". A proibição não se transforma em lei, mas em exogamia. A ausência de roupas não é expressão da falta, é possibilidade: "o que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido". O homem nu é o cogito antropofágico, a multiplicidade formadora de uma ciência do vestígio errático, radicalmente antikantiana. Pois mesmo depois que os descobrimentos se fizeram acompanhar pelas ciências de um universo infinito e pelas utopias, que "desviaram a Europa do seu egocentrismo ptolomaico", Kant soube criar a ilusão de que fazer as coisas orbitarem ao redor das nossas formas da intuição seria fazer em metafísica o que Copérnico fizera em astronomia. A "natureza da faculdade de intuição" se interpõe definitivamente entre o homem e a verdade. A origem de todo multiculturalismo: a moral do homem vestido. Baixa antropofagia. A revolução copernicana deve deslocar todo "eu penso", o ponto de vista que pretende conter em si todas as linhas formadoras daquilo que é nosso. Ela deve impossibilitar a formação da herança e do patrimônio, interrompendo a convergência centrípeta provocada pelo centro de gravidade do Patriarcado - como afirmou Clastres, "é tempo de buscarmos outro sol e de nos pormos em movimento". É preciso recuperar a experiência. "Contra a memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada".

10. A memória fonte do costume e a metafísica selecionista e eugênica são os procedimentos da antropotecnia messiânica. O que distingue o homem dos demais animais? O que distingue uma vida que vale ser vivida, de uma vida vegetativa? O que distingue um homem bom de um homem mau? Trata-se, desde de Platão, de uma seleção das linhagens. A antropofagia, diferentemente, constrói as gentes de verdade através da "encorporação", ou de um "viver nos outros".

11. Afirmar a experiência, a "existência palpável da vida", ou suprimir "as ideias e outras paralisias", significa perturbar a hierarquia postulada entre as ideias e a vida, entre a cabeça e o resto do corpo: "rítmica de comunión sin cabeza, sin complejos, sin rostro", ou "uma concepção matriarcal do mundo sem Deus". Como escreveu Nietzsche, "não estar à espera de longínquas, desconhecidas beatitudes, bençãos e graças, mas viver de tal sorte que queiramos viver ainda uma vez e queiramos viver assim para a eternidade". "A terrena felicidade", contra o sequestro do sentimento órfico na formação da cultura brasileira.

12. "Somos a utopia realizada, bem ou mal, em face do utilitarismo mercenário e mecânico do norte. Somos a caravela que ancorou no paraíso ou na desgraça da selva, somos a bandeira estacada na fazenda". O encontro transformado em utopia estabelece uma aparente oposição entre o Messianismo (promessa eugênica) e a utopia realizada (imanência da devoração). Ou, por outra, a oposição entre o monoteísmo do deserto, calcado na teologia da necessidade, e o politeísmo plástico dos trópicos, onde os deuses fabricam e são fabricados. O ateísmo com deus, que segundo Oswald de Andrade seria aceito no então nascente século XX, é um retorno ao politeísmo plástico. Mas é também o que possibilita o sequestro do sentimento órfico: Oswald já notara que "esse sentimento se transfere para a religiosidade política (Hitler, Mussolini, Stalin) ou para a filosofia do recorde nos esportes, como na moda ou na iconografia cênica". E se ainda hoje "os homens querem ver os deuses de perto", arriscamos a transferir o sentimento órfico para outras formas da religiosidade política - o messianismo desenvolvimentista ou o santuarismo político -, ou para a espetacularização dos esportes e do entretenimento. À utopia cabe resgatar o sentimento órfico, reconduzi-lo ao cotidiano, roubar a tecnologia das mãos do espetáculo. Não para produzir mais uma promessa messiânica, mas para resistir, "desta terra, nesta terra, para esta terra. E já é tempo".


(Para essa bricolagem foram devorados os seguintes textos:

ANDRADE, Oswald de. A utopia antropofágica. 2. ed. São Paulo: Globo, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, 1995.

ANDRADE, Oswald de. Estética e política. Organização e estabelecimento de texto de Maria Eugênia Boaventura. São Paulo: Globo; Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, 1992.

ANDRADE, Oswald de. Os dentes do Dragão. (entrevistas). 2. ed. Pesquisa,
organização, introdução e notas de Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Globo; Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

AGUIAR, Gonzalo. Por una ciencia del vestigio errático. Buenos Aires: Editora Grumo, 2010.

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela, VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Vingança e temporalidade: os Tupinambá. in: Cultura com aspas. São Paulo: Cosac y Naify, 2009.

CHAMIE, Mário. Caminhos da carta: uma leitura antropofágica da carta de Pero Vaz de Caminha. São Paulo: Funpec Editora, 2002.

CLASTRES, Pierre. Copérnico e os selvagens. in: A sociedade contra o estado. Tradução Theo Santiago. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

DELEUZE, Gilles. Platão e o simulacro. in: Lógica do sentido. Tradução Luiz Roberto Salinas. São Paulo: ed Perspectiva, 2000.

DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Felix. O que é a filosofia? Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso. São Paulo: ed. 34, 1997.

LUDUEÑA, Fabián. La comunidad de los espectros. Buenos Aires: Miño Dávila, 2010.

NIETZSCHE, Friedrich. Fragmentos póstumos de 1881. in: Nietzsche, Coleção Os Pensadores. Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1983.

NODARI, Alexandre. La única ley del mundo. in: AGUIAR, Gonzalo. Por una ciencia del vestigio errático. Buenos Aires: Editora Grumo, 2010.

RIST, Gilbert. The history of development. Tradução Patrick Camillier. New York: Zed Books, 2008.

SAHLINS, Marshall. The sadness of sweetness, in: Current Anthropology, vol.37, n.3, junho/1996.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Desenvolvimento econômico e reenvolvimento cosmopolítico: da necessidade extensiva à suficiência intensiva, in: O Sopro 51, maio/2011.

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. Tradução Marcela Coelho de Souza e Alexandre Morales. São Paulo: Cosac & Naify, 2010.)

Nawã pulitikarã II

(Regatões negociando à margem)

-- Há-de dar o compadre
pelo espelho 'aruâ
Trinta libras de goma
     Na soma...
-- Não, Caríua, não dá.

(Souzândrade, O Guesa, O Tatuturema)

Nawã pulitikarã

- Seu Adauto, eu queria comprar um tambaqui pra nós fazer uma farofa, porque vamos subir o rio ainda uns dois dias. Será que o senhor vende um pra nós?

Ao que o candidato a vereador respondeu:

- Queísso, Nonato, que eu quando estou lá em cima não pago por nada, e nem chego a pedir: vocês me dão. Bora lá pra você ver como tá de fartura no meu açude, e não quero dinheiro não. Quero é levar o trator com a minha balsa até lá em cima, fazer açude pra todo mundo. Esse aqui foi feito com os cem mil que eu peguei no Banco da Amazônia. A produção de peixe tá toda empenhada nesse empréstimo. Vamos lá que eu vou roubar um peixe do banco pra vocês comerem, pra ver como é bom ter essa fartura perto de casa.

Enquanto isso, o tio materno, quase monolingue em hantxa kuin, continuava repetindo:

- Certim!

Deixa eu ser Zé Gaudino?


""Como liderança, papai tinha que estar sempre com ânimo para inventar aquelas grandes caçadas, aqueles forrós homéricos, essas coisas de epopeia. Em um dia quente de início de verão, ele organizou uma tinguizada no rio abaixo, para qual saiu convidando com alegria os seus filhos e genros, e suas famílias. Nesse dia a sociedade que ele queria fazer era restrita: não queria fazer negócios com bebida, queria só beber. Catou suas últimas garrafas de cachaça, seu terçado e sua panela. Calçou as botas e foi-se pelo caminho buscar tingui. De lá vinha seu Zé Gaudino, cariú satisfeito carregando banana, novato na colocação.

- Pegando tingui, seu Antônio. A pesca é onde, animada assim com dois tatuzinho?

- Ah, hoje tem pesca não, é as mulheres que vão ali buscar qualquer coisa, pra comer com atsa.
- Ora, pois vinha pensando mesmo em procurar alguma coisa também, pra comer com a banana que vou mandar Maria cozinhar pra gente. Bora depois da pescaria tomar essas garrafas lá em casa.

"Cariú enxerido", pensou meu pai, antes de insistir:


- Mas vô tirar pouco tingui, pra num estragar o poço, que os menino agora tão falando que estraga.
- Tem nada não, só mais um bolo num faz diferença. Qualquer coisa fui eu quem colocou, que o senhor num estraga nada que é pro seu povo comer depois.
- Então vai buscar tua panela, e pega bota, que elas vão é pra lá da boca do Soberbo, passando naquelas tabocas todas lá.

O cariú foi então buscar tingui no seu quintal. Veio de lá calçado trazendo terçado e panela também. Nisso meu pai ia já longe, que, tendo falado o lugar errado pro Zé Gaudino, achou que tinha se livrado dele. Quando ia já descendo o barranco, ouviu a voz do cariú detrás dele:

- Mas seu Antônio, num era pro outro lado?

E meu pai foi olhando pro nawa, pensando em açoitar ele com a banda do terçado, mas se conteve, virou e foi andando calado. O cariú foi indo junto, falando muito. Que cariú que é bom de conversa fala mesmo. Quando eles alcançaram as mulherada, e os parente do meu pai, que já iam quatro voltas de rio abaixo, o filho mais velho dele perguntou, na língua mesmo, que era pro cariú não entender o que eles vinham falando:

- Mas pai, tu num disse que era só a gente? Minha mulher já tá achando ruim comigo. Diz ela que esses cariú fica só mesmo olhando as meninas quando elas vão tomar banho.
- Mas num é que eu vinha só, mas que ele de enxerimento veio de conversa me seguindo?
- Deixa eu bater nele. Quer ver como ele chora?
- Num faça isso, que eu já ia batendo nele e deixei. Meu filho, eu sou a liderança, tenho conduta, deixa ele ir com a gente, que ele vai aprender alguma coisa.

Meu pai era uma grande liderança, que quando tinha briga, mesmo longe, eles iam até ele pegar conselho, e pedir remédio pra amansar mulher, e pedir pra ele apartar briga de irmãos, essas coisas".

Isso o velho me contou pra explicar porque, ainda hoje, eles quando vão em um lugar sem ser convidados chegam lá cumprimentando:

"Opa, deixa eu ser Zé Gaudino, e que tal está você?..."

Acho que era também pra explicar minha situação, explicar aquela sociedade que nascia ali. Eu estava ali sem ser convidado, fazendo pesquisa, e tal. Eu era dispensável, em certo sentido, mas minha presença ali compunha uma sociedade diferente. Estava lançada a esperança de ser recebido aqui em casa também, de chegar aqui e se dizer Zé Gaudino. Pois ir sem ser convidado é dispor-se a dever, é generosidade também".

('crônica' dedicada à memória do sábio Tuin Kuru)

4 sinais (de 2010)


Alguns lingüistas se aproximam da missiologia, quando transformam em seu comprometimento íntimo – o destino posto a si como desejo – seu apego por uma máquina tradutória de extrair constantes, de reduzir o único em convenção, de transformar o possível em correto. A construção abstrata de um campo institucional, com relações de trabalho e prestígio (métodos, instituições de pesquisa, filiações teóricas) substitui aquilo que o lingüista é capaz de experimentar com a língua que estuda, e posteriormente substitui o que ele poderia experimentar com a sua própria linguagem. Ele assim coloniza de fora para dentro, até ficar preso nas malhas de sua própria capacidade de expressão cotidiana. Seu objeto deixa de ser a língua em sua transformação interminável, para se tornar os movimentos lingüísticos mais corriqueiros, mais estereotipados, “este é o cachorro dele”, “a menina está sentada perto do cesto”, “quanto custa o chocolate?”.

*

Em que pese as nossas boas intenções ao valorizar a diversidade lingüística brasileira, a relação de alguns povos com as suas línguas, e com o pano de fundo que as acomoda, é uma relação de aventura, de transformação, e não uma relação patrimonial, de fidelidade a um corpo reificado de formas gramaticais. Talvez, esta irrefreável abertura ao Outro indique o quanto o futuro dessas línguas está entrelaçado ao nosso: continuarão apresentando-nos o diverso, se formos capazes de parar de apresentar-lhes um futuro onde essas formas não têm mais lugar.

*

Há, em alguns sistemas estruturalmente abertos ao Outro, uma predileção por variar na língua portuguesa a busca daquilo que ainda não se sabe. Assim, sujeitos praticamente monolíngües em hãtxa kuin (a fala verdadeira dos Kaxinawa) cantam hinos em português nos espaços abertos pela ayahuasca. A língua do Outro aparece como fronteira, como borda: além dela, o indiferenciado; aquém, a clareza do cotidiano. Nela, a experiência fascinante de ver o fora tornar-se forma.

*

“São os esforços, incessantemente repetidos, dos indivíduos de uma nação, para adaptar sua língua ao seu pensamento do momento que podem ter o efeito de modificar e transformar pouco a pouco as línguas, de suscitar línguas novas” (Gabriel Tarde). E, por outro lado, “somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo" (Guimarães Rosa).

Dividiu-se o mundo


"Não é novidade nenhuma dividirem-se os regimes fundamentais pelos quais a humanidade se rege em Matriarcado e Patriarcado. Aquele é o regime do Direito Materno e este, o do Direito Paterno. Aquele tem presidido à pacífica felicidade dos povos marginais, dos povos a-históricos, dos povos cuja finalidade não é mais do que viver sem se meterem a conquistadores, donos do mundo e fabricantes de impérios.

O professor italiano Ernesto Grassi, que nos tem visitado, pende hoje para uma tese que realça as virtudes do Matriarcado, principalmente as do a-historicismo, em face do descalabro a que nos vem conduzindo o Patriarcado, cuja maior façanha é a descoberta da bomba de hidrogênio e que tem como sua carta de identificação o capitalismo, desde as suas formas mais obscuras e lavadas até a glória de Wall Street.

A descoberta do Novo Mundo veio trazer ao panorama da cultura européia um desmentido paradisíaco. O ecumênico cristão caía de um golpe. Do outro lado da terra - que era redonda e não chata e parada, com céu encima e inferno embaixo - havia gente e gente que escapava por completo ao esquema valetudinário da Idade Média, o qual fazia desta vida um simples trânsito.

Desde então, mesmo que não identificado e compreendido, surgiu no horizonte das controvérsias essa extraordinária questão do homem natural, sem culpa de origem e sem necessidade alguma de redenção ou castigo.

As Utopias foram as caravelas ideológicas desse novo achado - o homem como é, simples e natural.

De Morus a Campanella até nossos dias, a humanidade insiste, sem saber, em se matriarcalizar. Todas as chamadas lutas pela liberdade não passam senão de episódios da guerra contra o regime de desigualdade e da herança, imposto pelo Direito Romano e sagrado pelo Cristianismo.

O branco, que se chamou de civilizado, insistiu em padronizar a sua “superioridade”. Mas nem sempre foi feliz. Caso curioso é esse do sábio Lévy-Bruhl, um dos mais autorizados sociólogos da França contemporânea. Lévy-Bruhl criou a lenda de uma mentalidade pré-lógica, isto é, primitiva. Havia-se encontrado, enfim, a linha demarcatória entre a mentalidade primitiva e a mentalidade civilizada. Esta era a vitoriosa detentora do instrumento de todas as mágicas da inteligência. Era a possuidora da lógica. A lógica que fizera a ascenção de Estagirita, através das névoas platônicas que recobriam a Idade Média religiosa. A lógica que criara e disciplinara a ciência e que viera trazendo, nas conquistas da guerra e da paz, a luz decisiva do progresso. A lógica que de Aristóteles a Descartes pusera de pé mais que o homo faber, o mundo faber. Ao contrário desse título que justificava todos os privilégios e com eles os racismos e os imperialismos, uma outra pobre humanidade, colorida de azeviche ou pigmentada de ocre, vegetava nas regiões onde ainda era permitido andar nu e viver feliz. Para essa, era evidente que só poderia sobrar uma mentalidade diversa e inferior - a mentalidade pré-lógica.

O primitivo, que, pela sua teimosa vocação de felicidade, se opunha a uma terra dominada pela sisudez de teólogos e professores, só podia ser comparado ao louco ou à criança.

Dividiu-se então o mundo entre duas categorias de seres: a superior, que tinha como seu padrão “o adulto, branco e civilizado”, e a outra, que juntava no mesmo comboio humano “o primitivo, o louco e a criança”. Esse esquema fácil ultrapassou o século XIX, que não atendeu aos rugidos proféticos de Marx, ao sol novo de Nietzsche, que não atendeu aos abismos siderais de Freud".

Oswald de Andrade, em A Marcha das Utopias